Artigo excelente sobre o novo disco do Chico!
Pra quem quiser saber tudo sobre esse disco acessar http://www.chicobastidores.com.br
Arthur Nestrovski / ESPECIAL PARA O ESTADO
Não tenha pressa. A arte é longa e a vida é breve, essas canções vão durar pra sempre e nosso tempo é curto (como diz o narrador-personagem da faixa 3), mas por isso mesmo não pode haver meia hora melhor gasta do que essa, ouvindo cada história, cada pequeno romance, cada poema cantado, com a devida atenção¹.
Ouvir com atenção, por sinal, é o que as canções mais pedem; e era disso mesmo que falava Chico na notória entrevista de 2004, sobre "o fim da canção".
² Como acontece tantas vezes, o que ele falou foi uma coisa e o que disseram do que ele disse, outra. Chico jamais falou que a canção ia acabar. O que ele disse é que certo modo específico de fazer canções, a combinação minuciosa entre palavra e música, numa tradição que tem em Jobim e Vinicius seus modelos, não goza mais da popularidade que já teve; e que essa arte maravilhosamente brasileira de compor canções talvez ainda venha a ser vista, num futuro mais ou menos próximo, como uma forma musical e poética cujo período mais vibrante terá sido o século passado. O que não significa que não haja mais ninguém compondo canções assim, nem que muito do melhor não esteja, quem sabe, por vir.
Na sequência, em 2006, o próprio Chico lançou o CD Carioca, que já bastaria, por si, para reforçar a aposta. Aquele disco pode ser visto como uma verdadeira galeria de gêneros (choro, samba, valsa etc.), cada um levado ao limite, num sentido figurado tanto quanto técnico. Só as harmonias cromáticas do choro de abertura, preenchendo cada espaço do campo tonal, já demonstravam a maestria do compositor nesse "fim" de uma era. Ele ali parece disposto a levar as coisas até onde possível, preservando e transformando Jobim, tanto quanto Vinicius. Tudo isso sem perder de vista o que se passava, naquele dia e hora, para além dos encantamentos da poesia e da música, e para além dos encantamentos do coração, bem na cara de quem sempre pôs o pé na rua, e nunca fingiu que não vê o que não dá pra não ver.
Cinco anos e um romance (Leite Derramado) depois, Chico chega ao Chico; e dizer que ele chega a si não seria nada justo, depois de o Chico ser o Chico há tanto tempo. Mas o depuramento e ao mesmo tempo o virtuosismo, o controle e o puro prazer de escrever letra e música, e de cantar canções, chega aqui a um ponto que faz por merecer a simplicidade definitiva do próprio nome - um dos nomes mais comuns no Brasil, mas que há muito tempo, dito assim, solto, todo mundo sabe que só pode ser o Chico Buarque.
Ninguém como ele mesmo percebe melhor a diferença entre esse Chico público, um espírito da música e da poesia que hoje virou patrimônico coletivo, e o homem íntimo, que se confronta com o papel em branco a cada vez que vai escrever uma letra. O tema da duplicidade, somado à comédia ou farsa da celebrização, já era o grande assunto do romance Budapeste; e ganha agora outra versão em "Rubato", parceria com o baixista Jorge Helder, co-autor também de "Bolero Blues", no disco anterior.
"Rubato" é um termo técnico, uma indicação para tocar fora do pulso metronômico exato, dando mais expressividade a algum trecho. A ironia já começa aí, porque nessa canção a melodia de mil ângulos imita ritmos imprevisíveis da fala, e só quem estiver controladissimamente a tempo será capaz de não perder o rumo expressivo do canto. Que o poeta também tenha sido capaz de achar uma sílaba precisa para cada nota constitui outra façanha. Mas a maior ironia se vai ver mesmo na letra.
Na primeira estrofe, o poeta diz à sua Aurora para vir depressa ouvir, antes que "um outro compositor... roube e toque e troque as notas no songbook", estragando tudo e expondo o seu amor na televisão. Isso só para na segunda estrofe o mesmo apelo para ouvir "nossa música" já vir da parte de quem está "roubando de outro compositor". Mas será que este já não era o autor da primeira? A essa altura, Aurora virou Amora, que vai virar Teodora na terceira estrofe, composta, quem sabe, por um segundo ladrão, que terá certamente seus cem anos de perdão, à medida em que as canções forem se transformando umas nas outras, como afinal se transformam todas as canções.
Se a palavra "rubato", em italiano, quer dizer "roubado" (musicalmente, "tempo roubado"), isso só engrossa ironicamente o caldo de traições e roubos, de identidades e autorias trocadas que eram a própria essência do romance Budapeste. E será que não dá, pelo menos de brincadeira, para imaginar o memorável ghost-writer José Costa cantando aqui, tresdobrado sobre si mais uma vez?
No extremo oposto do CD, na penúltima faixa que espelha esta segunda, a própria canção se recria, ou se rouba, agora em forma de irresistível samba, "Barafunda": "Era Aurora/ Não, era Aurélia/ Ou era Ariela/ Não me lembro agora..." E quem será que está ali cantando, nessa canção em que mulheres apaixonantes do passado - incluindo, impossivelmente, a Ariela de Benjamin - vão se confundindo com grandes craques de futebol, em lembranças mal desfiadas que também abrem espaço para fulgurações da História e exultações de carnaval?
Alguém tem dúvida? Só pode ser aquele campeão do esquecimento seletivo, o inesquecível ancião Eulálio, de Leite Derramado, cujo monólogo vê-se agora roubado e transformado em samba-do-crioulo-doido, em que se cruzam paixão, futebol e política. Mas este é um Eulálio feliz, reencarnado em Elza Soares (já que a canção cita diretamente "Dura na Queda", escrita para Elza) e com direito até a uma aparição da musa Maristela.
Em retrospecto, a forma do disco se desenha assim, em espelho. São oito canções de amor, de "Rubato" (que alude a Budapeste) a "Barafunda" (que evoca Leite Derramado). Cada uma num gênero:
Faixa 2: marchinha -- marchinha de vanguarda, mas marchinha, com banda de coreto e tudo.
Faixa 3: blues, introduzindo outro grande tema do disco: a paixão do homem mais velho pela menina moça. Em "Garota de Ipanema", como em "Bolero Blues", essa era uma paixão sonhada, frustrada. Agora, vivida e assumida, sem se levar a sério demais, com uma leveza e uma graça que dão encantamento a quase tudo no disco.
Faixa 4: baião -- de vanguarda, modulando cromaticamente por meio-tom, mas baião. Para ser mais preciso: uma canção meio sem gênero, quase recitativo, que vai sonhando com um baião até que consegue virar o próprio.
Faixa 5: canção francesa, narrador e narrada cantando afinal juntos, namorando em tom maior, cromatismos e curvas, delícia. Participação mais que especial da cantora Thais Gulin.
Faixa 6: adágio jobiniano, o nome fala por si: "Sem Você 2", melodia plangente e harmonias que vão caindo, caindo, caindo.
Faixa 7: Samba de gafieira, parceria com Ivan Lins, aqui com a participação vocal do impagável Wilson das Neves (parceiro do Chico na já clássica "Grande Hotel").
Faixa 8: valsa russa, em que Chico incorpora o Google Maps ao acervo da nossa lírica (assim como já introduzira o orelhão, em "Bye, Bye Brasil" e a secretária telefônica em "Anos Dourados", sucessivos avanços na tecnologia do recado amoroso).³
Os arranjos, sempre na mão de Luiz Cláudio Ramos, sutilizam o mundo sonoro dos últimos três discos, de modo um pouco mais concentrado e discreto, mas talvez por isso mesmo ainda melhor resolvido. Em torno à banda de base -- violão de Luiz Cláudio, piano de João Rebouças, baixo de Jorge Helder, bateria de Jurim Moreira --, comparece o clarinete de Paulo Sérgio Santos aqui, a harpa de Cristina Braga ali, o violino de Nicolas Krassik, o acordeão de Marcos Nimrichter, a guitarra de Frado e o violão de João Bosco acolá, entre outros convidados, cada um no ponto preciso e necessário, quase nunca repetido. As canções, aliás, quase todas, também não são cantadas mais do que uma única vez, do começo ao fim e pronto. Cada uma é como um poema num livro, que se pode ler quantas vezes quiser, mas nem por isso precisa ser grafado de novo.
Essas oito canções, que vão passando de uma a outra como contos de Sheherazade, ficam emolduradas pela primeira e última músicas do disco. Tantas boas emoções, tanto prazer em inventar e viver histórias, tanta delícia de compor e cantar, tamanho gosto de vida, espalhados entre as faixas 2 e 9, ficam postos em devida perspectiva com essas outras duas, que vêm antes e depois.
O disco abre com uma toada, "Querido Diário", entoada por um personagem que entra de cara para o acervo das grandes criações do Chico, captando disfunções sociais do Brasil com uma antena que só ele tem. Ganha voz agora o miserável que vai pelas ruas, recebendo "fica com Deus" dos "conhecidos", traçando seus descaminhos pela cidade barulhenta, acompanhado de um cão raivoso, pensando em "ter religião" e amar uma mulher "sem orifício", amando obscura e violentamente uma companheira de carne e osso, afinal castigado a porretes pelo "inimigo", mas resistindo a tudo, "macio".
Nesse ponto, cabe um comentário musical. Cada uma das cinco estrofes começa em dó maior, vai traçando um percurso cromático, primeiro para cima e depois para baixo, e termina em dó menor (na palavra "sozinho", por exemplo, final da primeira estrofe; ou "pedaço", no final da segunda)4. Tonalidades maiores tendem a soar mais abertas, luminosas, positivas; tonalidades menores são o contrário. E no arco do disco o que se escuta na última faixa, um afro-samba em parceria com João Bosco, fará a versão espelhada dessas modulações.
As harmonias, nesses casos, precisam ser compreendidas junto com as letras, que elas ao mesmo tempo refletem e nutrem. O disco começa por um fim; quer dizer, por onde estamos agora: a miséria escancarada, que não se quer reconhecer, mas está aí em cada esquina. Na alegoria musical encenada por esses dó maior e dó menor, a aparente "cordialidade" das circunstâncias -- aqui cantadas em dó maior -- pede para ser compreendida naquele contexto identificado desde a década de 1930 pelo pai do Chico, um contexto caracteristicamente brasileiro, marcado pelo recalque de suas próprias violências -- ressoando em dó menor.
Tentando ser mais claro: algo se esconde nas alegrias reais ou assumidas do dó maior: são as dores do dó menor, e o balanço entre uma e outra tonalidade parece ali realizar em termos puramente musicais uma oscilação de fundo na nossa formação.
A interpretação pode soar redutora; mas veja-se a última canção. O disco termina por onde tudo começa: na trama da escravidão, núcleo recalcado de violências que vão se repondo, sem fim, na história do país. A cena é chocante: quem canta -- não por acaso, em dó menor -- é um negro preso ao tronco, prestes a ser açoitado e cegado pelo senhor de engenho, depois de ter visto (ou não visto) sua "sinhá" nua no açude.
Leite Derramado já explorava obsessivamente as formas como a herança da escravidão se dispersa e se recalca, e continua por aí, em mil nuances, reconhecidas ou não. Continua inclusive aqui -- em subitamente luminoso dó maior --, no "cantor atormentado" que surge na última estrofe e revela o segredo inconfessável da história: é ele mesmo o "herdeiro sarará/ do nome e do renome/ de um feroz senhor de engenho" e -- de volta ao dó menor --, bem lá na origem escondida de tudo, herdeiro "das mandingas de um escravo/ que no engenho enfeitiçou Sinhá".
Só um compositor tão ciente de seus meios, seja na música seja na poesia, arma suas invenções assim. Tudo está posto: o Brasil se entende, afinal, nessas canções. Que elas sejam também criadas sobre uma simples alternância entre tom maior e menor, dão a dimensão do Chico compositor, ou mais especificamente, do Chico criador de canções, em que poesia e música estão indissoluvelmente ligadas.
Haveria muito mais para ser dito. Valeria a pena chamar a atenção para os vários momentos em que as canções como que deixam de ser canções cantadas, retornam ao ritmo natural da fala (de onde todas elas vêm), só para voltar depois, gloriosamente à música. É o que se escuta, por exemplo, quando Chico canta o verso "Tipo pra vida inteira", em "Tipo um Baião", ou "...a casa/ A roupa que ela usa, as mechas, a tiara/ Posso adivinhar a cara que ela faz", em "Nina".
Valeria também a pena falar das rimas ( "sobra/ abóbora", "acorda [com "r" rolado]/ Flórida", "pinta a boca e sai/ take your time", para ficar só em exemplos de "Essa Pequena") e das palavras e expressões preciosas ("Cazaquistão", "Barbarella", "song book", "a mó de me quebrar", "a bola entrar na gaveta").
A pequena introdução sem letra de "Se Eu Pudesse" provoca uma alucinação, dá um frio na espinha: é o Tom cantando. Mas não é Tom, é Chico mesmo, que ali carrega o Tom na voz de modo comovente. E já que estamos nisso, valeria muito a pena estudar as artes do cantor Chico Buarque. Entre tantos lugares-comuns que foram se formando ao longo do tempo, tem esse do Chico "compositor que canta", eufemismo para dizer que não canta. Oxalá todo compositor não cantasse assim! Para começo de conversa, quase ninguém escande musicalmente uma letra como ele. Ampliando uma sílaba aqui e encurtando outra ali, acentuando ou amaciando palavras, Chico nesse disco dá uma verdadeira aula. Sem falar no carisma da voz, que a gente reconhece em qualquer larará, lariri.
Mas o tempo, como disse o cantor da faixa 3, é curto, a vida breve e a arte é longa. Dizer que neste Chico o Chico chega a si seria injusto. Mas dá para ver o disco como um renovado resumo dos principais temas e principais recursos musicais e literários do compositor, escritor, poeta e cantor Chico Buarque ao longo dessas últimas duas décadas, marcadas pela publicação de quatro romances intercalados com três discos. Quem acompanhou essa produção sabe o que representa, tanto em termos musicais quanto literários, como expressão de nós mesmos e estímulo para pensar e viver o Brasil.
Quem não guardou essas canções e romances para si, quem não fez do que o Chico fez um acervo pessoal e precioso? Cada um de nós se tornou, com ele, o ghost-compositor de canções que não são mais só dele, são de todos nós e de nenhum de nós. Este novo Chico nos confere mais uma vez o privilégio de ser, por meia hora e eternamente, Chico Buarque. Cada um de nós, por meia hora, será Chico Buarque cantando tormentos e glórias, festejando o que pode ser festejado e cuidando do que pede atenção. A penúltima palavra fica com o velho cantor: "salve este samba/ antes que o esquecimento/ baixe seu manto/ seu manto cinzento". E a última palavra, e o último dó, nos leva de novo até o começo, para repetir o trânsito por este disco sem fim.
* Arthur Nestrovski é diretor artístico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Compositor e violonista, lançou, entre outros, os discos Jobim Violão e Chico Violão (Biscoito Fino) e os livros Notas Musicais e Outras Notas Musicais (Publifolha).
1. Este ensaio tem por base um pequeno texto escrito por encomenda da gravadora, para ser distribuído junto com os materiais de divulgação do CD Chico.
2. "O Tempo e o Artista: A Canção, o Rap, Tom e Cuba, Segundo Chico." Entrevista a Fernando de Barros e Silva. Folha de S.Paulo, 26/12/04. Disponível no Acervo Folha e também em www.chicobuarque.com.br
3. Sobre esse assunto, ver o ensaio de José Miguel Wisnik e Guilherme Wisnik, "O Artista e o Tempo", no vol 2. do Songbook Chico Buarque (Lumiar, 1999), reed. em José Miguel Wisnik, Sem Receita (Publifolha, 2004).
4. A rigor, uma primeira inversão de lá bemol com sétima maior, mas o mais importante aqui é a sensação de acorde menor alterado, sobre o baixo de dó.