sábado, dezembro 6

Noite nos olhos

Tava pensando noutro dia em uma das minhas músicas preferidas do João Gilberto, ela fala da madrugada. Música linda, meio desconhecida, mas obra-prima. E há uma variedade imensa de músicas e poemas que tratam do tema, alguns falam da lua, da rua, etc.
Posso dizer que ninguém conhece a noite como eu. Já vivi muito com ela.
Pra conhecer verdadeiramente a noite, é preciso encará-la de frente, sem medos, sem titubeio, é preciso ter coragem pra ver sua cara.
Muita gente tenta iludir a noite, toma calmante, remédio pra dormir, bebe pra driblar a sua escuridão.
Mas pra entender e ver a verdadeira face da noite, é preciso se dar, ouvir o seu barulho, o que ela tem a dizer, e isso só acontece quando todo o resto está em silêncio.
Tem gente que tenta transformar a noite em dia, tentando viver num eterno clarão. Quando anoitece, vai pra bares iluminados, com todo mundo vivendo como se fosse dia, pega fila de bar como se fosse banco, conversa nos balcões como se fosse o cafezinho do trabalho, paga altas contas como se fosse um supermercado de alegria. Ali, engana-se a noite, tudo é dia, tudo é claro, tudo é feliz, e para isso é preciso pegar trânsito, dificuldade de estacionar, pagar o preço de ludibriar a noite, encarando-a como um dia sem fim.
Pra ver a face da noite, que é bem escurinha, é preciso se enlaçar com ela, aceitar a sua existência e o que ela diz, é nela que as verdades do seu dia aparecem, é ela quem lhe joga na cara suas fraquezas, é ela que escancara seus maiores medos.
Mas não se pode fechar os olhos pra isso. Porque os olhos só poderão se fechar depois que a voz da noite for ouvida e bem digerida.
Já trabalhei muito de noite, passei noites em claro estudando, e foi durante a noite que muito aprendi. Ela me abraçou de diversas maneiras. Já toquei violão com a noite, já vi noites lindas: com vento, algumas com neve, outras com luas claríssimas. Já acompanhei a noite de várias formas - só eu e ela.
A noite também não é egoísta, ela aceita ser dividida com mais de uma pessoa, desde que estas se comprometam a sentir o que a noite tem a dizer e se entregarem a ela. E nestes casos aí, também vivi noites inesquecíveis, quando a noite desmacara pudores e revela amores. Desnuda e desduda.
É preciso entender a noite, deixar-se envolver por ela, dar-se a ela, ver a sua cara preta, escutar o que ela tem a lhe dizer, não ter medo de careta.
Porque só depois da verdadeira escuridão da noite é que o dia fecundo aparecerá. O claro que te ilumina acenderá.
Sei disso.
Então aceito a noite como ela é, ouço-a cada vez mais, e espero um dia poder, depois de respeitá-la e entender o que ela tem pra me dizer, me entregar, respirando a sua fecunda paz derradeira e ressucitando em uma manhã gloriosa.
Enquanto não tenho isso, encaro ela cotidianamente e a levo comigo pra cima e pra baixo, pra onde vou, mesmo durante o dia, na escuridão que insiste em morar embaixo dos meus olhos.

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