segunda-feira, março 17

Sem rede

Dia desses fui fazer companhia à minha amada e levamos uns novos amigos gringos para um bate-volta no Guarujá. O xaveco suficiente para me convencer a fazer tal programa, principalmente em uma época em que estava na reta final dos meus estudos para os concursos públicos, foi realmente atrativo.
Aqueles nao eram gringos comuns, desses que eu já perdi o encanto do "novo que vem de fora", mas eram realmente diferentes. Eram quase os super-heróis modernos!! Eles faziam parte da trupe do badalado Cirque de Soleil, que agora está aqui em Sao Paulo.
Eu ainda nao tive oportunidade (muito menos o dinheiro) para ir assistir aos espetáculos e até o momento ainda nao tinha muita vontade. Mas pelo que se fala, pelos anúncios, pela repercussao desses últimos anos, parece ser realmente algo que vale a pena ser visto.
Enfim, o fato dos caras estarem hospedados perto do trampo dela e irem tomar café lá todos os dias aproximou a gringaiada trapezista da minha namorada, que como forma de agradecer um convite feito por eles para que ela visse o espetáculo, resolveu convidá-los para a formosa praia da Enseada. É nessas que eu entrei na história.

A viagem
Pegamos a estrada junto e no caminho, em meio as conversas triviais de aproximaçao inicial (de onde voce vem, o que fazia antes), eu ia olhando pra serra do mar e pensando no trajeto de estudos que deveria fazer naquela manha, na praia. Ia dar uma afastada da gringaiada e iria emendar os manuais que faltavam para estraçalhar na prova para qual estava me preparando. Apesar da oportunidade de babar ovos para esses heróis modernos, minha vida estava em jogo. Eu, com 28 anos, mestre em história, duas faculdades, experiências profissionais distintas, ainda nao tinha me firmado profissionalmente e morava novamente com os meus pais (segurando o ralo dinheiro que me sobrava do último bico). Esses concursos eram minhas últimas esperanças para sair disso, dessa vida, que apesar de potencialmente promissora, é cotidianamente arrasadora de qualquer otimismo.

Bom, chegando no Guarujá em uma bonita manha de terça-feira do mês de março, fomos finalmente ao que nos interessava: os gringos e minha namorada tomando sol. Eu, com meus manuais de estudo.

Depois de umas duas horas, confesso que com uma batidinha de côco me acompanhando, consegui acabar o que tinha me proposto para aquela manha. E terminado o estudo de direito internacional público e gramática portuguesa, partiria pro papo com os artistas estrangeiros, pois afinal de contas isso me ajudaria para desenferrujar meu inglês e meu francês (conhecimentos também requeridos nas provas que me aguardavam).

Os gringos trapezistas
Eles eram três, uma menina acrobata belga e um casal de canadenses. Do casal, ela era a fisoterapueta da trupe de super-heróis e ele era seu namorado (pelo físico troncudinho-malhaçao) deveria ser também um trapezista.
Ao conversar com os estrangeiros comecei a sentir que eles estavam muito mais próximos de mim do que eu poderia imaginar. A acrobata belga, por exemplo, super simples e gente boa, tinha mesma idade nossa. Ela tinha tentado a vida inteira ser acrobata e havia feito teste durante muitos anos até passar. Só estava realizando seu sonho há alguns meses, mas sem total segurança de até quando aquilo tudo iria durar e de como iria ficar sua vida depois. Seu possível namorado, que era mais velho e nao sabia o que queria do seu relacionamento, tinha ficado em outro país. Enfim, ela nao tinha a mínima idéia do que aconteceria com ela, com seu amor, com o futuro. Como eu, ela nao gostava de passar protetor solar, e como eu, ela também nao tinha a mínima idéia se a vida dela, toda sua preparaçao, iria dar alguma coisa realmente significativa nos próximos atos. O espetáculo para ela era muito alegre (se chamava alegria), mas como diria o poeta, "tristeza nao tem fim, felicidade, sim". O seu presente nao lhe trazia nenhum futuro. Ela bastava-se com a alegria de finalmente poder justificar seu passado de luta que pelo menos até o momento, a tinha levado até ali.

O casal, pelo contrário, era aparentemente um sinal de que as vidas profissionais contemporâneas poderiam também andar juntas e para o bem de um casal. Eles na verdade eram casados. Mas ao longo de minha conversa com o rapaz, descobri que ele nao trabalhava no Circo. Estava lá como marido dela. Ele até brincou com a situaçao, mas me reconheci nele quando vi que a piada doía um pouco nele. Apesar de nao morrer de fome e estar junto com pessoa querida, nao era legal ser sustentado por ela, ser quase que como um fardo. Eles brincavam sobre isso, ele se mostrava seguro de si, super consciente e bem preparado (devia ser nutricionista), mas como eu, na minha idade, também nao tinha conseguido se destacar definitivamente por si mesmo.

Enfim, almoçamos em um restaurante de frutos do mar na beira da praia e no começo da tarde já estávamos de volta ao trânsito de Sao Paulo. Os deixamos no hotel, deixei minha princesa na sua casa e fiquei estudando mais no resto do dia enfurnado no meu velho quarto da casa dos meus pais.

Eles nao eram os super-heróis modernos. Eram muito mais de carne e osso e próximos de mim do que poderia imaginar no começo daquele dia.

Nao sei se é um paradigma da nossa geraçao errante pelo mundo afora e mesmo dentro de nossa cidade. Eles, como nós, eram trapezistas. E sempre estiveram e continuariam se equilibrando sem rede.

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