"The revolution will not be televised" - Gil Scott-Heron
Pela primeira vez falava em um grande público, ainda em mais em um anfiteatro histórico como aquele, da Sorbonne ocupada, onde já tinham se reunido Sartre, Cohn-Bendit e os estudantes de maio de 68 (além de toda história anterior, mais de 500 anos), e em um momento tao turbulento. E por ser nessa situaçao, notei que pela primeira vez aqui na França meu sotaque francês da Água Branca nao é recriminado, se tornou até um artifício para tornar minha fala ainda mais engajada (acho que também pelo imaginário revolucionário que os latino-americanos formaram aqui na França desde a revoluçao cubana, e depois com todos os refugiados políticos que vieram estudar aqui)- pela primeira vez os franceses fizeram força para entender uma pessoa nao nativa, e melhor ainda, em sua grande maioria concordaram com o olhar estrangeiro.
Depois de tudo discutido na assembléia, a massa de estudantes saiu em plena madrugada, se dividindo em vários grupos, e cada um foi para uma zona da cidade: uns pegaram o metrô para a periferia norte, outros pra leste, outros para oeste, e eu fui para periferia sul. A idéia era unir as lutas que estao ocorrendo aqui, manifestar e chamar o povo das periferias, que é o mais oprimido (e nao só manifestar pelos direitos trabalhistas dos universitários que saem para o primeiro emprego), mas também por uma melhor condiçao de vida para os mais pobres, de saúde, de educaçao para todos - e nao só para uma minoria da aristocracia francesa que se revezou durante séculos nas escolinhas descoladas do Quartier Latin.
As razoes de luta também cresceram, queriam a cabeça do ministro do Interior, o já citado no blog, Nicolas Sarkozy, que depois das primeiras manifestaçoes das minorias das ex-colonias francesas nas periferias, tinha pregado que só uma limpeza étnica nas periferias de Paris acabaria com o problema. A sociedade francesa estava cansada de tudo isso.
Entao como mágica, as pessoas saíram nas ruas também nas periferias, acolhendo o chamado dos estudantes, e todos por uma luta maior, por um mundo diferente, que nao aquele. Alguns estudantes tinham poucas pedras nas maos, mas muitas idéias, e o dia nasceu com o povo inteiro (lúmpen e classe média) reivindicando em todos os cantos da cidade. O dia nasceu como há muito tempo na nascia na França - a Revoluçao está vindo.
A verdade
Infelizmente nao foi essa a história que aconteceu e nem é isso o que acontecerá. Sei que todos que estao aí lendo gostariam que tudo isso estivesse em marcha, e que eu fizesse parte de tudo isso - um novo Le rouge à latino-americana (uma mistura de revolucionário francês com latino-americano, seria demais nao?). Mas a verdade é que tenho acompanhado toda a situaçao por visitas pontuais aos centros de conflito e pelo rádio, jornal e internet, aqui do meu quartinho, lendo meus livros. E sinceramente nao tenho tido o mínimo sentimento de culpa.
As imagens pra quem olha coisa de fora, principalmente pensando a França como ela se diz ser, parece que sao imagens de Revoluçao - barricadas, carros queimados no centro de Paris, a polícia desesperada tentando remediar o que parece inevitável. E por ser na França, sempre tendemos a achar que o que eles querem é a Democracia, a República, o resgate dos valores universais que eles criaram e "universalizaram" nas cabeças do mundo durante todos esses séculos desde a Revoluçao Francesa.
Mas infelizmente nao é o que acontece, aliás, essas manifestaçoes nao sao para mudar nada, e sim para manter as coisas como estavam, nao tem nada de revolucionárias, e sim de conservadoras, reacionárias. Explico:
Os jovens estudantes da Sorbonne e das melhores escolas francesas só sairam na rua com uma reivindicaçao e uma razao: manter o contrato de trabalho francês que garante para o jovem recém-saído da universidade um contrato eterno de trabalho (quase como se fosse um funcionário público, uma carreira estável, pra vida inteira, o que eles chamam de contrato de duraçao indeterminada), ou saindo depois de dois anos, mas com uma boa indenizaçao nas costas, suficiente para ficar mais dois anos na flauta (o que eles chamam contrato por tempo determinado). O que o governo mudou foi que durante ou depois desses dois anos de experiencia, a empresa tem o direito de mandar o cara embora se assim achar conveniente, mas sem ter que pagar uma indenizaçao animal.
Os jovens estao certíssimos em reivindicar por isso e por lutarem por seus direitos adquiridos, mas o que me irrita é que os mesmos nao estao nem aí para os principais problemas da França no momento. O buraco é muito mais embaixo e eles só tao preocupados, e só fazem baderna pro umbigo deles, num corporativismo individualista que é a única maneira de mobilizar os jovens franceses no dia de hoje.
O buraco mais embaixo
O que me irrita mais é que todos os jornais e agências de notícias internacionais estao fazendo uma ampla cobertura agora que as manifestaçoes sao feitas por jovens branquinhos e de cachecol colorido da Sorbonne - que fazem greves com malabares e flores brancas, ocupando a biblioteca milenar da Sorbonne (até zuando uns livros e documentos da idade média), e nos Invalides, lugar sensaçao turística da cidade (lá é onde fica também o túmulo do Napoleao, que deve estar virando no caixao ao ouvir as palavras de ordem na manifestaçao).
Há uns três meses atrás, quando os marroquinos e árabes dos banliueus estavam queimando carros e depredando escolas e prédios públicos nas periferias, só se ouvia pouca coisa - e na maioria das vezes recriminando. Quase sempre eram matérias de pé de página e sem foto (dizendo "nessa noite 5 mil carros foram queimados, e 39 escolas nas periferias de Paris").
Na minha opiniao esse é o problema mais grave da França no momento. É saber incorporar democraticamente as minorias étnicas e imigrantes que estao sem opçao nenhuma aqui. Sem trabalho e descriminadas. Os pais de estudantes brancos da Sorbonne (e talvez a maioria destes próprios manifestantes), elegeram e vao seguir votando na ultra direita francesa que deve ser reeleita no ano que vem, segundo as pesquisas - Chirac, Villepin e Sarkozy. Esse último é o favorito à presidência, e como Ministro do Interior, um de seus principais discursos é limpar a periferia dessa corja que está lá. Ele é o franco favorito.
O Napoleao, que está assistindo tudo de camarote de sua tumba dourada, sempre falava que revolta popular é só uma revolta, mas se a revolta popular se juntar com a burguesia, aí é revoluçao. E o que acontece aqui é justamente o deslocamento da manifestaçao dos estudantes burgueses que fazem malabares e queimam meia dúzia de carros no centrinho - e em defesa de uma garantia trabalhista pra eles, pelo pirulitos deles.
E de outro lado a massa de excluídos, étnico e economicamente, queimam tudo e se queimam nas periferias, querendo tudo ao mesmo tempo agora.
É claro que também é mentira o que coloquei no começo. Que os estudantes da Sorbonne iam fazer esforço para entender a fala de um gringo (além de que o metrô e transporte para a periferia nao funcionam durante a noite). Grande mentira. Na grande maioria das vezes, mesmo quando falo certo, durante as aulas, esses estudantes fazem caretas pra entender, ou corrigem erros dispensáveis, só pra tentar desestabilizar.
E o que acontece no metrô é gritante: por um lado os negoes, árabes, e imigrantes do leste europeu, super escandalosos, com suas roupas e línguas diferentes, e de outro lado, os brancos e "europeus de verdade-civilizados" lendo seus livrinhos. E sem nenhuma integraçao. Por mais que os imigrantes excluídos gritem ao falar, os "civilizados" parecem que estao em outro mundo. Falam muito pouco e quando falam, falam baixo, e simplesmente nao olham para os outros (quando nao estao lendo seus romances de bolso). É uma coisa muito louca.
Provavelmente os estudantes de classe média e alta da Sorbonne continuarao sua luta até manter seus direitos, e no ano que vem devem reeleger a direita francesa.
Sarkozy e sua turma (todos também formados nessas escolas) devem ficar no poder e continuar a fazer a limpeza dos imigrantes "baderneiros das periferias" e diminuindo cada vez mais a possibilidade de alguma vida para os jovens da periferia, que nao tem nem voz e nem por onde começarem alguma reivindicaçao.
Assim como na época onde a maioria dos franceses apoiou silenciosamente a ocupaçao dos nazistas em Paris durante a segunda guerra, e depois quando também apoiaram a manutençao das colonias francesas na África, como na Guerra da Argélia, o que deve ficar nos anais e na nossa imagem da França é a imagem de uma minoria branca deslocada do povo (como os líderes da resistencia francesa e os jovens de maio de 68), que lutam pelos direitos "universais", mas estao na verdade lutando pelos seus umbigos.
E eu continuarei acompanhando tudo aqui de dentro, entre um livro e outro, e sonhando um dia em que as massas encontrem essa classe média e que as duas queiram realmente mudanças mais profundas e decidam mudar tudo de uma vez, e se for pedir demais, pacificamente.
Nao sei se é realmente possível, mas continuarei esperando.
10 comentários:
Caralho,
é foda,
aqui poucas pessoas tem esta percepção,
eu mesmo não sabia direito o que estava acontecendo,
a maioria das informações que chega nos principais jornais é uma merda,
mas ontem por acaso li uma matéria que tinha sido feita com um dos líderes de maio de 68 que fala várias coisas que você comenta em seu texto, deixo até o link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2303200605.htm
muito lôco o texto!!
keep walking!
nóiz
po mano, realmente rudo a ver. Nao tinha lido nao. O Cohn-bendit da entrevista é o cara da foto de cima, que tá segurando o mega-fone. muito louco, é isso aí mesmo.
e aí? o bicho tá pegando né?
achei muito feiro o negócio do caseiro..
bejundas pra ti
nóis
obs: ah, e valiue por ter lido. pensei que ninguém ia ler. me empolguei um pouco.
Chega de babar ovo pra tal da civilização. Um outro mundo é possível qdo pararmos de acreditar em alienígenas: sejam eles muçulmanos, bolivianos ou favelados.
Mega post, Santo. Continue empolgado, a torcida agradece e comparece.
beijos
É por essas e por outras que eu te amo!
e eu também!!!!
Mandou a bronca. Textaço. Agora passo a ver as matérias das mídias de cá de outra forma.
A revolução não vai passar na TV. É verdade.
Abração,
Laio
saudade maninho!
Muito legal o seu texto. não tinha idéia do que acontecia pro ai....tudo chega destorcido pro aqui!!
grande abraço, muito prazer em conhecê-lo!!
e ae mano!
vamo atualizá esta birosca ou não!
vc acha que foi fazer o que na frança??
estudar?
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